Por Tathiana S. Uehbe Picciano, 2010.
Na obra de Freud (1900) sobre “Interpretação dos Sonhos”, o autor afirma que “cada sonho se revela como uma estrutura psíquica dotada de sentido”, que pode se fixar a um ponto determinável nas atividades mentais em estado de vigília. O que significa que o sonho quase sempre se conecta a algum evento ocorrido durante o dia. Freud chamava esse evento de “restos diurno”; um evento que de algum modo se liga, na mente do paciente, a algum conflito inconsciente com intuito de representá-lo. Será que o brincar da criança é diferente no processo psicanalítico? Percebo que não, pois se nos sonhos estão presentes as realizações de desejos inconscientes, compreendo, que no brincar também. Winnicott (1975) diz que:
“O sonho ajusta-se ao relacionamento com os objetos no mundo real, e viver no mundo real ajusta-se ao mundo onírico por formas que são bastante familiares, especialmente à psicanalistas.” (Winnicott, 1975, p.45)
Desse modo entendo que o brincar, assim como o sonhar, é capaz de se relacionar e se ajustar com “objetos do mundo real e do mundo onírico”, por formas bastante disfarçadas que surgem através do sintoma.
Sintoma, que é oriunda de um interjogo de forças psíquicas entre o que está dentro (mundo interno) e o que está fora (mundo externo) do sujeito. Mas que forças são essas? Freud (1900) ainda não apresenta tais forças como pulsões de vida e pulsões de morte. Entretanto, discorre sobre a função da censura (superego) nos sonhos e cita que “os sonhos são os guardiões do sono”. Como sabemos, o sono pode ser perturbado por estímulos externos (como barulho, um cachorro latindo), ou então, por estímulos internos (desejos e anseios insatisfeitos e/ou conflitos não resolvidos) que poderiam atrapalhar o sono. Esses conflitos psíquicos, em geral, travam-se entre as pulsões que querem gratificação e as defesas que querem negá-la. A não satisfação de desejos pode gerar tensão interna, ou então, a satisfação pode dar origem a ansiedade e culpa. Cogito que esse é um dos motivos para se reprimir os desejos. Mas o que é desejo na concepção freudiana?
De acordo com o “Vocabulário da Psicanálise” (Laplanche, 1998, p. 113), o desejo inconsciente faz parte de um dos polos do conflito defensivo e que ”tende a realizar-se restabelecendo, segundo as leis do processo primário, os sinais ligados às primeiras vivências de satisfação” do bebê com sua mãe. Como esse desejo aparece no brincar com a criança? Como interpretar na sessão com a criança?
Essas são algumas das minhas inquietações e reflexões que pretendo abordar neste texto. Utilizo a teoria de Freud (1900) sobre “realização de desejo” para compreender um pouco sobre o sonhar e o brincar no setting analítico.
Sonhar e brincar são dois verbos que, a meu ver, podem ser conjugados juntos no viés psicanalítico. Na obra de Freud (1900) sobre “Interpretação dos Sonhos”, o autor destaca que “o sonho é a via régia de acesso ao conhecimento do inconsciente na vida mental”. O que significa que o brincar também possibilita este “acesso e o desvelar” da realidade psíquica do sujeito.
Freud (1900), neste trabalho, também ressalta que o sonhador deve utilizar da associação livre, recusando-se da racionalização, para identificar o sonho pelo modo que ele se apresenta – um sintoma. Observo que o brincar e o sonhar com a criança se mostram da mesma forma. Por exemplo, uma criança pode ter um sonho desprazeroso, onde “desloca” seus objetos internos hostis para uma “tia” que é representada no sonho por uma bruxa. Podemos dizer que a “tia” não é uma “bruxa”, mas que algo que não foi introjetado como bom por essa criança, simbolicamente, no sonho veio representada pela bruxa (do mundo onírico).
De acordo com Freud (1900), nos sonhos das crianças o desejo não satisfeito na vigília será “instigador” do sonho a noite, pois ainda não há censura entre o pré-consciente e o inconsciente. Podemos supor que em uma criança, há o desejo “manifesto” de permanecer na relação simbiótica com a mãe, para se defender ou encobrir seus sentimentos “desprazerosos” e hostis de aniquilamento do ego, de separação. Assim não tendo que se deparar com seu desamparo primitivo. Neste trabalho sobre “realização de desejo” Freud (1900) chama de “censura” o agente que não permite a satisfação de desejos, que são repudiados pela consciência.
Winnicott (1975, p.71) diz que a brincadeira ‘playground’ “é um espaço potencial entre a mãe e o bebê, ou que une mãe e bebê”. Nos atendimentos com crianças observo que não basta só interpretar as angústias e ansiedades, ao contrário, é no brincar o ponto de mutação no desenvolvimento emocional (entre o objeto real e o mundo onírico). Por exemplo, o tal do “esconde-esconde” e a “contagem do tempo” (princípio de realidade) no brincar podem significar a experiência primitiva do controle mágico, que faz parte da fase da onipotência infantil.
Com essa contribuição dos autores e com a vivência clínica, compreendo que o “brincar e o sonhar” carregam muitos significados da experiência emocional seja nas crianças ou nos adultos e que se farão presentes no processo psicoterápico, possibilitando o “continuar a ser”.
Texto (2010) por Tathiana Santana Uehbe Picciano
Psicóloga/ Especialista em Psicoperapia Psicanalítica – USP
Ex-treinanda no Serviço de Atendiemnto Psiquiátrico e Psicológico SAPPE/ UNICAMP
CPR 06/65236
Referências Bibliográficas
FREUD , S. (1900) – Realização de Desejos . In Obras Completas: edição standard brasileira. Rio de Janeiro: Imago 1996, p. 580 – 601.
FREUD , S. (1911) – Formulação sobre os dois Princípios do Funcionamento Psíquico . In Obras Completas: edição standard brasileira. Rio de Janeiro: Imago 1996, p. 237 – 244.
LAPLANCHE, J. (1998) – Vocabulário da psicanálise/ Laplanche e Pontalis. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 113, 516.
WINNICOTT , D. W. (1956) – Preocupação Materna Primária. In Da Pediatria à Psicanálise. Rio de Janeiro: Imago 2000, p.399 – 405.
WINNICOTT , D. W. (1975) – O Brincar & a Realidade. Rio de Janeiro: Imago 1975, p.45, 71.