Rita Aparecida Nicioli Cerioni
Tathiana Santana Uehbe Picciano
Psicólogas treinadas em Psicoterapia Breve Psicanalítica do Serviço de Atendimento
Psicológico e Psiquiátrico aos Estudantes (SAPPE/ UNICAMP)

“Ainda assim acredito ser possível reunirmo-nos, tempo,
tempo, tempo, tempo. Num outro nível de vínculo, tempo,
tempo, tempo, tempo.”
(Caetano Veloso).

O tempo na sua concretude sempre nos remete a uma questão quando pensamos psicanálise. Sendo o objeto de investigação da psicanálise o inconsciente, e pensando no inconsciente como atemporal e com um modo de funcionamento próprio, como podemos apresentar o tempo como algo que se impõe na relação analítica? Como tornar possível a elaboração psíquica com um tempo pré-determinado? E em que essa determinação ativa o processo de elaboração? São essas as questões que pretendemos ampliar e refletir nesse trabalho.
Os atendimentos que temos realizado no SAPPE têm nos mostrado que é possível desenvolver uma psicoterapia de base psicanalítica, com tudo que isso implica (transferência, contratransferência, interpretação, associação livre, resistência, mecanismos de defesa entre outros) num tempo limitado. Um tempo que permeia a vida contemporânea, que transita no cotidiano, e se por um lado pressiona, por outro também organiza.
Nos dias de hoje, em que “o tempo vale ouro”, a que serve a delimitação de um tempo real em psicoterapia? À instituição ou ao paciente? Diríamos que aos dois, cada um na sua singularidade. A instituição no sentido de poder atender uma demanda, possibilitando que um maior número de pessoas possam ser atendidas, e ao paciente pensamos que a delimitação do tempo é um importante disparador psíquico, já que “introduz a noção de realidade temporal, de limite, ou seja a separação, recordando a problemática da castração. (Gilliéron, 1983 apud Hegenberg, 2004 p.56).
O tempo está ligado ao princípio de realidade.

Este princípio não abandona a intenção de fundamentalmente obter prazer; não obstante, exige e efetua o adiamento da satisfação, o abandono de uma série de possibilidades de obtê-la, e a tolerância temporária do desprazer, como uma etapa no longo e indireto caminho para o prazer. (Freud, 1920 p. 20).
O princípio de realidade é regido pelo processo secundário. Secundarizar é função do ego, e o ego é a instância que pensa, portanto a que permite e executa a elaboração psíquica. Assim, o estabelecimento do tempo será não só um organizador cronológico, mas um determinante da elaboração, objetivo fundamental da psicoterapia breve psicanalítica. Segundo Freud (1914), elaborar exige um esforço do psiquismo com a finalidade de “integrar suas excitações e estabelecer entre elas conexões associativas” (La Planche e Pontalis, 1998, p. 143). Mas de que elaboração estamos falando? O que se integra, o que se conecta? No processo analítico, o paciente passa a tomar conhecimento de si mesmo através da relação com o analista, no campo transferencial. É neste campo que se opera a compulsão à repetição, aprofundando nas resistências.
Portanto, a elaboração psíquica é um instrumento terapêutico que possibilita uma tomada de consciência das resistências e dos impulsos que as geram. A elaboração psíquica capacitará o ego a atingir maior maturidade e força, resignificando na transferência o protótipo de funcionamento infantil, reconstruindo outras possibilidades de experiência emocional.
Passearemos por algumas estrofes da música “Oração ao Tempo de Caetano Veloso, fazendo um paralelo com o tema desse trabalho. Pensamos ser possível sim “reunirmo-nos num outro nível de vínculo”, através da delimitação de tempo, sem perder o foco da psicoterapia que é a elaboração psíquica. Esperamos com isso, ampliar uma discussão para a questão do tempo, não só como um fator externo, mas como algo que ao ser internalizado pelo paciente e trabalhado pela dupla analítica pode abrir caminho para a elaboração e por conseqüência, para as mudanças.

O Tempo da Elaboração
“…tempo, tempo, tempo, tempo
Vou te fazer um pedido..”

Quando a pessoa procura atendimento psicológico, seu pedido está variavelmente ligado à busca do alívio de sua dor, traduzida por sintomas, sensações, angústias, estagnações na vida prática, impossibilidade de pensar sozinho. Um pedido que precisa ser contido pelo outro que o atende, analisado e transformado. O paciente geralmente está em crise, e precisa apropriar-se de sua dor para que um trabalho se inicie.
No SAPPE o modelo utilizado em psicoterapia breve psicanalítica é estruturado a partir da teoria de Edmond Gilliéron. Dentro dessa proposta, o paciente é atendido, estabelecendo-se quatro sessões iniciais, de quarenta e cinco minutos. A determinação do tempo se apresenta do início ao término. É nessas quatro sessões que terapeuta e paciente trabalharão a fim de construir um sentido para o sofrimento que mobilizou a busca do atendimento, e nesse momento o terapeuta precisa ter uma escuta atenta para analisar os motivos atuais (sintomas, conflitos), e formular uma hipótese psicodinâmica sobre a crise.
Com base nos elementos atuais, se reconstrói o passado do paciente, trilhando um caminho regressivo. É na análise do campo transferencial, que se estabelece desde o início, que esse caminho torna-se possível de ser percorrido. “Essa técnica retoma, pois, o procedimento da psicanálise que consiste em ir do presente ao passado, mas funda-se claramente em dois níveis de análise: verbal e não verbal.” (Gilliéron, 1996, p 124). No par analítico ocorre uma dinâmica relacional entre paciente e terapeuta através da transferência e da contratransferência, esta última ligada aos sentimentos e interações emocionais provocadas no terapeuta pelas projeções do paciente, no sentido verbal e não verbal. Algo que transita no sensório, no corpóreo, que traduzidas em palavras pelo terapeuta podem ser ouvidas e trabalhadas pela dupla. Transferência e contratransferência formam um terceiro elemento, um “terceiro ouvido” (Teodoro Reick). Um encontro entre inconscientes, onde a contratransferência não significa uma força contrária ou mera resposta à transferência, mas sim um contraponto, algo necessário para que o movimento analítico aconteça. E é a atenção flutuante do terapeuta, imprescindível para o trabalho, que possibilitará essa tradução, essa “dança” entre os dois. Uma dança permeada pela contagem do tempo. Atenção flutuante significa que o terapeuta não fique aprisionado ao discurso do paciente, mas possa ouvir livremente a sua própria atividade inconsciente. O paciente associa livremente, e o analista escuta livremente. Livre de si para estar com o outro.
Segundo Zimerman (2004), citando Bion, o encontro analítico implica num encontro entre duas pessoas, onde uma deve estar supostamente menos angustiada que a outra. O terapeuta menos angustiado que o paciente, por estar ele próprio vivenciando suas angústias em outro lugar, em sua análise pessoal. Isto possibilita a atenção flutuante.
Do etéreo ao pontual, real, carnal, há a eternidade, a inexistência do espaço. Lugar da ilusão, da fantasia, onde ocorre a subjetividade do ser em suas relações. Lugar do imaginário, onde pensamentos e sentimentos oscilam e se embrenham num tempo passado ou futuro ou mesmo no presente não presentificado. É necessário que o pontual se imponha, o chão se faça evidente com sua dureza, pó, aridez, mas nos dando a sua firmeza confirmadora de nossa existência. (Schoueri, 1997, p 129).
Um trabalho árduo, desafiador, um encontro vivo onde se pode construir o pensar para então poder discriminar, individualizar, integrar, tornar-se proprietário de seus desejos, medos, dores e prazeres, num tempo e num espaço. Tempo e espaço compõem o “setting” terapêutico. Em psicoterapia breve o tempo determina não só o término de cada sessão, mas de todo um processo. O término de uma análise? Uma análise é terminável? Não. O que o tempo em psicoterapia breve representa é que o término é apenas um momento particular do processo.

“Compositor de destinos,
Tambor de todos os ritmos
Tempo, tempo, tempo, tempo
Entro num acordo contigo
Tempo, tempo, tempo, tempo.”

Um acordo mútuo, a dois. Isto significa que ambos tem consciência desse término, de uma separação anunciada. Separação que representa tantas outras separações na vida, e que podem ser elaboradas nesse momento pelo paciente. Mas esse término tem efeitos no terapeuta. O terapeuta que se propõe a atender em psicoterapia breve, precisa ter se desprendido do que Freud chamava de ambição terapêutica. Se livrado do desejo infantil e inconsciente de onipotência, de ser tudo para o outro. Em última análise, ter superado o seu narcisismo primário. Em qualquer processo, o que se objetiva não é a cura, no sentido de eliminação de sintomas, mas permitir que o paciente possa produzir mudanças que reflitam maior adaptação principalmente nos setores afetivo-relacional e produtivo. Mudanças essas que não precisam estar presentes só no final da psicoterapia, mas durante e pós-término, através da elaboração que se inicia, e essa sim, é interminável. O paradigma da psicanálise é “tornar consciente o inconsciente”, o que podemos dizer equivale em psicoterapia breve, ajudar o paciente a tornar-se independente, através do desenvolvimento do ego.
Não é só o paciente que elabora, o terapeuta também vivencia essa separação, e precisa cuidar para ele não atuar no sentido de prorrogar o término, que poderia implicar num retrocesso, pois reatualizaria o narcisismo primário tanto de um quanto do outro.
O foco em psicoterapia breve de base psicanalítica, segundo Hegenberg (2004), é compreender a angústia que mobilizou o paciente a buscar atendimento e estabelecer uma significativa comunicação entre terapeuta e paciente. Compreender a angústia não é fazer um esclarecimento, dar uma explicação racional sobre a queixa e sim possibilitar que o paciente entre em contato com a essência de suas angústias, sejam elas de castração, separação ou persecutoriedade.

“Que sejas ainda mais vivo,
No som do meu estribilho,
Tempo, tempo, tempo, tempo,
Ouve bem o que te digo,
Tempo, tempo, tempo, tempo.”

Não é a voz do terapeuta que deve ser ouvida, mas o eco que essa voz faz dentro do paciente, tornando vivo o sentido de sua angústia, sentido esse dado através da interpretação do terapeuta. Mas o que é interpretar? Para a psicanálise é evidenciar o que está oculto, mas que se faz presente nos sintomas, nos conflitos, nos atos falhos, nos sonhos, na transferência, na associação livre. Fenômenos tão vivos na psicoterapia breve, tanto quanto na psicanálise clássica. A interpretação do analista, somada ao “insigth” do paciente abre caminho para o que Freud, já em 1937 denomina de construção em análise. Portanto, não é a interpretação em si que possibilita a elaboração, mas o sentido que isso toma para o paciente.
Uma interpretação, por mais rica que seja, não é suficiente para transformar.
Mais uma vez o terapeuta deve estar atento, no campo transferencial, ao tempo do paciente. Só assim é possível que a dupla analítica construa o desenvolvimento psíquico, que o paciente encontre o seu passo, o seu ritmo, tendo o terapeuta como um contraponto. A partir da internalização desse contraponto, o paciente pode começar a desenvolver seu próprio “holding”, amparar-se em si, contar mais consigo mesmo, para além de seus medos, de suas ameaças internas e externas. As construções em análise não objetivam transformar o frágil em forte, mas acreditar que é possível conviver com essas fragilidades e não sucumbir à elas. Crescer para além dos conflitos, pois esses são constituintes do sujeito. Portanto para que esse crescer aconteça, a dupla deve funcionar como o paradigma mãe suficientemente boa-bebê descrito por Winnicott. O analista deve ser suficientemente bom, o que significa que ele não precisa ser tudo, saber tudo. Inclusive no que diz respeito à interpretação, ao trabalho em si. Poder falhar, no sentido de não poder prover tudo para o outro, implica deixá-lo na falta, experienciar a separação, e assim construir um continuo vir-a-ser.
Indivíduo que pensa, sente, deseja por si, diferenciado do outro “mãe-analista”. O tempo… A delimitação do tempo pode propiciar essa experiência.

“De modo que o meu espírito
Ganhe um brilho definido
Tempo, tempo, tempo, tempo
E eu espalhe benefícios,
Tempo, tempo, tempo, tempo.”

O modo como o terapeuta maneja o sentido do limite do tempo para o paciente permite um “holding”, uma sustentação que dará forma, contorno para a angústia de separação. E o paciente a partir dessa vivência poderá espalhar benefícios em si e em suas relações. Para que esse “holding” seja eficaz, o terapeuta deve ter trabalhado dentro de si as questões que dizem respeito às suas angústias de separação e castração. “…A espontaneidade só faz sentido num ambiente controlado. O conteúdo não tem sentido sem forma”. (Winnicott, 2005 p. XIX). Cumprir o limite de tempo determinado no início, possibilita um “setting” seguro e confiante, para que o paciente possa reencontrar a loucura juntamente com o terapeuta e elaborá-la.
Assim, pensamos que o tempo na psicoterapia breve é um dispositivo que aciona e permite o trabalho de elaboração psíquica.

Considerações Finais
Neste trabalho procuramos ampliar e refletir sobre o tempo em psicoterapia breve e sua relação com a elaboração psíquica. Se esse dispositivo, que difere da psicanálise clássica, e muitas vezes se interpõe à ela, é um ativador do processo de elaboração. Embora reatualize angústias impensáveis ligadas à castração e separação, a psicoterapia breve não se detém só à isso. Vivenciar um processo terapêutico verdadeiro e efetivo, permite que se estabeleça, como diz Caetano, um outro nível de vínculo, onde a vida possa ser pensada, transitada, digerida, e os sentimentos encontrem um percurso, uma vazão, saindo da estagnação, reconstruindo o potencial criativo. E se pensarmos nos pacientes do SAPPE, alunos da Unicamp, diríamos que são pessoas que, por apresentarem engendrados em si esse potencial, podem encontrar no trabalho de Psicoterapia Breve de base psicanalítica, uma possibilidade de expandir o afeto, que fica por vezes embotado na produção intelectual.

“E quando eu tiver saído
Para fora do teu círculo,
Tempo, tempo, tempo, tempo
Não serei nem terás sido,
Tempo, tempo, tempo, tempo.”

A delimitação do tempo, anuncia desde o início do processo um término. A aproximação do término pode provocar ansiedades, sentimentos que atualizam conflitos vivenciados nas primeiras perdas do paciente. Elaborar o fim desse processo, implica em elaborar a separação, e em última análise o que precisa ser de alguma forma diluída é a transferência. No início do tratamento normalmente o paciente não se dá conta desse tempo, erege defesas para não entrar em contato com a angústia de separação ou de castração. No término é imperativo: ele se depara com a realidade, podendo acentuar suas angústias e com ela a transferência. Portanto, para que o término seja algo que traga algum sentido para o paciente, “esses sentimentos devem ser interpretados e elaborados, pois aí reside a última, e talvez a melhor chance de trabalho do material trazido pelo paciente”. (Schoueri, 1997 p.119).
Podemos entender a partir dessas discussões, que a psicoterapia breve não é sinônimo de superficialidade, nem de atendimento de uma demanda institucional: atender mais pessoas em menos tempo, pois se apoia num embasamento teórico.
Tem o tempo não como o encurtamento de um processo, mas faz do tempo um importante aliado para a elaboração e por conseqüência, promove mudanças no paciente no que diz respeito ao seu posicionamento psíquico perante a vida.

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ZIMERMAN, D. Manual de Técnica Psicanalítica – Uma re-visão. Ed. Artmed, São Paulo, 2004, p. 24.Texto (2010) por Tathiana Santana Uehbe Picciano
Psicóloga/ Especialista em Psicoperapia Psicanalítica – USP
Ex-treinanda no Serviço de Atendiemnto Psiquiátrico e Psicológico SAPPE/ UNICAMP
CPR 06/65236

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